Gazeta do
Povo
Para além
de toda a gritaria indignada de uma parte da classe artística brasileira, à
beira de um ataque histérico com a nomeação de Regina Duarte para a Secretaria
Especial de Cultura, há um fato indiscutível e chocante: os colegas de
profissão da atriz estão negando a ela o exercício livre de seus direitos
civis. É algo realmente extraordinário.
Mais de 60
anos após as lutas de Martin Luther King, que mudaram os Estados Unidos para
sempre ao provar para a sociedade americana e para o resto do mundo que todos
os cidadãos de um país têm direitos naturais que não podem ser negados por
ninguém e por nenhum motivo, estamos de volta, no Brasil de 2020, ao Alabama de
1960.
A “classe
artística brasileira”, ou mais exatamente os que fazem barulho na mídia, está
dizendo que Regina Duarte não pode exercer o seu direito constitucional de
aceitar um convite para o ministério do governo Jair Bolsonaro.
Assim como
um negro americano não podia ocupar cargos públicos pelo fato de ser negro,
Regina Duarte não pode ser ministra pelo fato de ser atriz – e atrizes, na
visão das nossas classes “intelectuais”, não podem trabalhar num governo de
direita, porque não têm o direito, garantido por lei, de ser de direita. Regina
é de direita? Muito bem: e o que resto do mundo tem a ver com isso? A
Constituição do Brasil diz que ela tem o direito de pensar o que lhe der na telha.
Nenhum dos
indignados com a nomeação de Regina Duarte se lembrou de levar em conta que o
governo de Jair Bolsonaro é legal, legítimo e constitucional. Foi eleito
democraticamente, dentro de todas as regras em vigor, em eleições livres, por
quase 58 milhões de votos – a maioria absoluta, de longe, dos que votaram na
eleição presidencial de 2018.
O que há de
errado em aceitar um convite para trabalhar nesse governo? Se você é contra o
governo, vá adiante e seja contra; mas você não pode negar ao cidadão que está
ao seu lado o direito de ser a favor. Ao agir como agiu no caso de Regina
Duarte, a “categoria artística” mostrou que não aceita, simplesmente, as regras
de uma democracia. Não há remédio conhecido para isso: quem não aceita as
regras da democracia é a favor de ditaduras. O resto é argumentação hipócrita e
falsificada.
Se Regina
Duarte vai ou não dar certo como secretária da Cultura já são outros
quinhentos. A impressão, pelos fatos disponíveis hoje, é que isso é uma missão
impossível. Talvez possa se demostrar que não, que a missão seja possível –
mas, nesse caso, será preciso fazer a demonstração concreta.
É, mais ou
menos, como nomear um cidadão para o Ministério dos Discos Voadores – que raios
um filho de Deus (uma filha, no caso), pode fazer de útil num cargo desses? O
Brasil não precisa de uma Secretaria, de um Ministério da Cultura. Precisa de
cultura – que não apenas é outra coisa, mas é algo que a intervenção do governo
ativamente atrapalha.
O Brasil
precisa de um serviço capaz de tapar goteiras, instalar ar condicionado e
evitar incêndios em seus museus, bibliotecas e milhares de instalações
dedicadas à cultura e entregues ao mais miserável abandono. Precisa impedir que
suas construções históricas venham abaixo. Precisa salvar as estátuas expostas
em praça pública. Precisa de todas essas coisas que você sabe tão bem quais são
– e nenhuma delas tem nada a ver com a Secretaria Especial de Cultura.
Mas não é
isso que se discute. O que se quer é cassar, em público, os direitos de uma
cidadã brasileira livre. É muito mais que ódio, apenas.
